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Historias sem fim

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Histórias Sem Fim

- Acabei -disse Rose com um suspiro de satisfação. Salvou o arquivo de texto e fechou o programa. Pôs o laptop em cima da cômoda e se deitou para dormir.
Passava das três horas da manhã e fazia frio no seu apartamento pequeno e silencioso. Rose fez uma anotação mental para lembrar de arrumar um gato ou um cachorro. Odiava ficar sozinha à noite, e era a hora do dia que seu cérebro funcionava melhor.
Mesmo agora não estava com sono. Decidiu revisar o livro que acabara de escrever. Nele, pessoas comuns entravam em contato com seres fantásticos do imaginário coletivo. Nada que já não tivesse sido contado antes: bruxos, lobisomens, vampiros, ciborgues... Uma verdadeira miscelânea de histórias que já vinham sido contadas há séculos.  Rose estava orgulhosa. Ela já havia escrito alguns livros de sucesso, mas esse era seu primeiro livro de fantasia e tinha certeza de que ele abriria as portas desse segmento da literatura para ela.
  Lendo uma fala de um dos seus personagens, começou a ficar com sono. Estava no meio de um diálogo entre um elfo e um vampiro. Os dois debatiam sobre o que tinha maior valor nutricional, a seiva do carvalho ou o sangue de um herbívoro. Rose podia até ouvir as vozes dos personagens, ela os conhecia tão bem... eles fizeram parte do seu dia-a-dia por muitos meses. As vozes eram tão nítidas, o cheiro da floresta, o odor acre de sangue coagulado que exalava do vampiro, a cor perolada do cabelo do elfo...
Mas... a conversa que eles estavam tendo não era a que Rose havia escrito. Era para eles estarem discutindo sobre o melhor caminho para a caverna onde goblins mercenários mantinham uma humana e sua irmã mais nova cativas.
Rose escutou com atenção. De repente, a conversa mudou. Os personagens logo passaram a analisar o terreno e consultar mapas. Buscavam a rota mais rápida e mais segura para a Caverna dos Goblins. Eles olhavam desconfiados para os lados, mas continuavam a conversar. Uma sirene de ambulância numa rua próxima deixou Rose mais desperta. Ela resolveu levantar para tomar uma xícara de café, e no caminho para a cozinha começou a pensar sobre arrumar seus horários e ter uma rotina mais saudável. Afinal, boas noites de sono às vezes faziam falta. Dormir com a luz do sol passando pelas cortinas e o barulho dos carros e pessoas nas ruas não era muito relaxante.
De volta na cama, com o laptop no colo, ela bebeu o café. O café tinha cheiro de mato. Não, tinha cheiro de sangue. E alguém muito próximo lhe falava sobre os benefícios da celulose.
Um barulho no mato. O elfo tirou rapidamente uma flecha da aljava e apontou o arco para o arbusto que se mexia em volta de Rose. Ela emergiu dele e encarou fascinada os dois seres que rapidamente abriram os mapas e começaram a falar de rotas livres e estradas tortuosas. Mas, ela não estava assustada... efeito do sono? Tentando falar com a maior naturalidade possível, a garota tentou um contato.
-Oi. Vocês estão fingindo, não estão?
O elfo, Dernandel, olhou para o mapa com mais atenção, ignorando Rose deliberadamente, enquanto George limpava o sangue seco do queixo, encabulado.
-Dernandel, é você?
Dernandel começou a falar mais alto, para deixar bem claro que não tinha ouvido a moça, e que não queria ouvir. Rose começou a ficar irritada. Ela os criou, ela deu voz a eles, e ela ia conseguir com que falassem com ela.
-Sabe, Dernandel, eu sempre te imaginei mais bonito... Na verdade, você tá meio acabado.
-O que? Minha senhora, eu tenho mil duzentos e sessenta e três anos, com corpo de cem e sabedoria de cinco mil. Se há algo errado comigo é só meu cabelo, e ele só está assim porque tenho feito curativos com as babosas da minha horta. Não posso usá-las nos cabelos porque tenho que curar os pobres animais que esse morcego sujo deixa moribundos por aí.
George arregalou os olhos para o elfo:
-Caramba, cara, cadê seu auto controle? Pensei que ser imortal tivesse te dado um pouco de paciência! Ela logo ia cair no sono e acordar com a cara no teclado, sem lembrar dessa loucura. Agora ela tá aqui, e você deixou ela toda assanhada. Olha só esse brilho nos olhos! Parece criança em manhã de Natal.
-Mas a culpa é de vocês, eu achei que vocês só poderiam fazer o que eu tivesse escrito. -Argumentou Rose.
-Olha aqui, sem  querer ofender, nem nada... mas a gente já faz isso há séculos, e todo mundo sabe que não se pode ficar atuando pra sempre. A gente pode ser marionete enquanto os outros estão com os livros abertos, mas a gente também merece um pouco de paz quando ninguém está olhando. E tenho dito. - George cruzou os braços sobre o peito, rebelde.
-Escute, minha senhora, -começou Dernandel, como quem explica a uma criança de onde vêm os bebês- a sua história é nova, mas nós somos muito velhos. Cansamos de salvar princesas, sair em jornadas heroicas, lutar em guerras colossais, ou nos envolver emocionalmente com humanos frágeis e inferiores.
-Mas... foi pra isso que vocês foram feitos! É isso que vocês fazem desde que foram criados...
-... e temos sido explorados até a última gota de sangue desde então.
-Não eu. Hehehe.-Disse George.
-É, você explorou os outros até a última gota de sangue, George.
-Não consigo evitar. É fácil pra você não ser sábio e metido o tempo todo, mas minha maior característica é o que eu como, não dá pra se livrar disso.
-Peraí, já escreveram sobre vampiros "vegetarianos", e eles se deram muito bem com a nova dieta.
-Enquanto as páginas estavam abertas! -explicou George.
Rose pensou por um momento, incrédula.
-Vocês estão querendo me dizer que em termos de "idade histórica", vocês estão na fase da adolescência e começaram a ficar revoltadinhos? Deus, isso é ridículo.
-Não estamos revoltados, só cansados. Tente fazer as mesmas coisas por séculos, sem folga, sem férias... Aparecemos em histórias o tempo todo, e agora que isso parece estar mais na moda, estamos trabalhando em dobro. Temos o direito de viver nossas vidas. - Dernandel parecia entediado com a discussão, como se aquilo não fosse levar a nada. O que de fato não ia.
Rose se perguntou se os personagens das epopeias da antiguidade agora estariam velhos e conformados com sua situação. Ela quase pode ver Ulisses olhando para os personagens mais novos e rindo, com nostalgia. Ou talvez os antigos não entendessem a revolta dos mais novos.
-A sua história, por exemplo, - disse George, olhando sorrateiramente um esquilo num pinheiro a sua esquerda – tem tanta gente que o sindicato todo dos personagens pseudo-medievais deve estar aqui. A única exceção são os anões, que você curiosamente decidiu trocar por goblins.
-É, o que foi bom. Esses estavam desempregados a um bom tempo. Se não fossem os card games, eles teriam morrido de fome. -Dernandel concordou.
-Sempre achei os goblins mais divertidos. -disse Rose, pensativa.
-Eles quase fizeram greve século passado, porque o SPPM não lhes dava garantia de emprego. Mas perceberam que parar de trabalhar por terem parado de trabalhar não fazia muito sentido...  -disse George.
-SPPM. Sindicato do que mesmo? Personagens Pseudo-Medievais?  - Rose estava confusa. O sono estava voltando, e a euforia já tinha acabado há alguns minutos.
-É. Todas as histórias em que aparecemos têm que ter um ar meio medieval. Outro clichê a que somos submetidos... -Dernandel suspirou tristemente. Ele pensou em todas as vezes em que desejou trocar as tavernas e o hidromel por uma mesa de cassino e cigarros. Sempre quis conhecer Las Vegas.
-Nós evoluímos. -disse George.- Os vampiros aparecem sempre nos dias atuais. A gente se mistura com a população, faz umas vítimas, transforma umas pessoas, se apaixona por humanos, somos caçados... Mas, um dia da caça outro do caçador, eu sempre digo. - E finalmente pulou contra o esquilo, que derrubou a castanha que segurava e não teve tempo pra mais nada.
George desceu do galho mais baixo da árvore ainda com o esquilo na boca e os olhos vermelhos brilhando. Dernandel balançou a cabeça em desaprovação.
-Bom, alguns de nós não conseguem largar os velhos hábitos mesmo.
Rose agora não conseguia manter os olhos abertos por muito tempo. O cheiro de café começou a entrar frio em suas narinas. Sua mão esquerda estava pegajosa. Uma camada fina de líquido marrom-escuro cobria parte do teclado e de sua mão. O lençol estava manchado. A tela apagada indicava a possível morte de seu computador. E a consequente perda do seu livro.
Mas ela estava satisfeita. Um pensamento surgiu em sua cabeça: as pessoas precisam parar enquanto ainda estão por cima. Ela só não sabia que esse pensamento não era sobre ela.
Escrevi isso antes de ler A História Sem Fim, de Micheal Ende. Então, qualquer semelhança é mera coincidência.
© 2010 - 2024 MoonchildLuiza
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